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quinta-feira, 18 de março de 2010

Dois caminhos


Pertencer a uma minoria sexual nessa nossa sociedade sexista e homofóbica é complicado, todo mundo sabe. Mas também tem seu lado bom, o que pouquíssima gente comenta. Deixe-me corrigir essa falha.

Uma grande vantagem de se ser homossexual ou transgênero é que ninguém tem expectativas precisas a nosso respeito. A maioria nos desaprova ou ignora, mas ninguém sabe o que achar dos detalhes de nossas relações, por exemplo. Uma mãe não vai chegar para a filha e dizer: “Fulaninha não é boa para você”, “Você devia se casar com uma médica” ou “Essa casa onde vocês vão morar não é boa para crianças”. Ela não tem como criticar que uma lésbica não cozinhe para a companheira, porque não há diretriz social sobre quem deveria cozinhar para quem ali...

Nós estamos livres para fazer as besteiras ou acertos que quisermos, sem que nos digam o que nossas avós achariam. Não há pressão para nos unirmos a essa pessoa em vez daquela, ninguém insiste para continuarmos juntas se a relação azeda, nenhum familiar ou amigo sugere que tenhamos filhos, ninguém fica perguntando quanto ela ganha ou se já é formada. Depois que já cruzamos a linha de nos assumirmos homossexuais, toda aquela imensa lista de expectativas que familiares têm em relação a amor e casamento ficam perdidas, não é verdade?

Lésbicas, em especial, sofrem menos que mulheres heterossexuais por conta das milhares de pressões sexistas que tampouco se aplicam a nós. Sim, nós somos alvo de preconceito, mas por outro lado podemos vestir o que queremos, sentar de pernas abertas, usar sapatos confortáveis, não fazer lipoaspiração, ter uma barriguinha, manter a sanidade em relação a uma aparência normal e não de top model adolescente. Podemos evitar aquelas revistas sempre iguais que dão dicas para a mulher ficar sedutora para o marido ou receitas para agradá-lo e aos filhos. Quem é que sabe o que é sedutor para uma outra mulher?

A idade também nos atinge de forma diferente do que às mulheres heterossexuais, me parece. Não temos aquele medo constante (e aparentemente justificado no caso das héteros) de ser abandonadas por uma mulher mais jovem. Você já reparou quantas lésbicas permanecem casadas na velhice ou arrumam novas parceiras depois dos 50 anos?

Mas eu percebo uma vantagem mais esotérica, que para mim explica a razão de ser de homossexuais e transgêneros. Vamos supor que a nossa existência não seja um acidente, mas tenha uma utilidade. Qual seria ela? Eu tenho a impressão de que nós viemos ao mundo para ensinar a absoluta bobagem de a raça humana se dividir entre homens e mulheres. Que essa guerra dos sexos é uma invenção estúpida, que deve ser desinventada o quanto antes.

Gays, lésbicas e transgêneros, pelo fato de misturarmos características que a sociedade está acostumada a ver bem separadas entre homens e mulheres, sabemos que mulheres podem ser assertivas, poderosas, autosuficientes; que homens podem ser sensíveis, vulneráveis, colaboradores; que o desejo pode brotar de várias formas e se expressar de mil maneiras, que o próprio gênero que acreditamos ser talvez não seja tão firme assim.

Nós somos a mistura do masculino e do feminino, com liberdade de escolhermos o que mais combina conosco. Nós entendemos que essa divisão é artificial e não nos sentimos tão presos a elas, já que nosso próprio desejo, nossa própria identidade já é uma quebra desses quadradinhos de homem e mulher. Não é poderoso isso? E necessário?

Não sou eu apenas que acho isso, mas toda a tradição dos berdaches entre os índios norte-americanos antes da chegada dos colonizadores europeus. Entre as tribos lá do norte, era comum a figura do homem-mulher ou da mulher-homem, um ser em geral chamado de “dois caminhos” ou “dois espíritos”.

Essa pessoa era respeitada justamente por ser capaz de acessar a realidade pelo viés tanto do homem quanto da mulher, e em muitas culturas recebia um status especial, entendendo-se que tinha poderes acima da média. Eu acho que os índios estavam muito certos em reconhecer o valor especial que nós, seres das minorias, trazemos para o ambiente em que vivemos.

E convido a todas as leitoras e leitores a usar essa capacidade de agir fora do esperado para criar uma sociedade mais equilibrada e menos esquizofrênica.
* Laura Bacellar é editora de livros, atualmente responsável, juntamente com um grupo de mulheres, pela primeira editora lésbica do Brasil, www.editoramalagueta.com.br.

dykerama

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